Sábado, 31 de Dezembro de 2011
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"The Female of the Species" - Rudyard Kipling :
A FÊMEA DA ESPÉCIE
Se o camponês do Himalaia encontra um urso feroz,
ele grita para o monstro, de modo a baixar-lhe o facho;
mas a ursa fêmea, acossada, mostra as garras, mostra os dentes,
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal do que o macho.
Quando Nag, a cobra, astuto, ouve passos descuidosos,
se arrasta às vezes, de lado, evitando algum empacho;
mas a sua companheira não se arreda do caminho,
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal do que o macho.
Quando os Jesuítas pregaram para os Hurons e os Choctaws,
rezavam por não ser presas do feminino penacho,
que elas – e não os guerreiros – é que os faziam tremer,
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal do que o macho.
O peito tímido do Homem explode sem dizer nada,
pois da Mulher por Deus dada não se dispõe com despacho,
mas a história do marido confirma a do caçador –
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal do que o macho.
O Homem, urso em muitos casos, verme ou selvagem em outros,
propõe negociações e reconhece o contrato;
só muito raro é que torce a lógica da evidência
até a extrema conclusão, num imperdoável ato.
Medo ou tolice é que o impelem, antes de punir os maus,
a dar julgamento justo ao vilão mais irreflexo.
O júbilo aplaca-lhe a ira; dúvida e pena não raro
pasmam-no em muitas questões – para o escândalo do Sexo!
Mas a Mulher por Deus dada cada fibra de seu corpo
numa questão só aplica, de ânimo aceso em fogacho;
e por concluir a questão, prevendo falhas futuras,
a fêmea da espécie tem de ser mais mortal que o macho.
Quem Morte e tortura enfrenta pelos que tem junto ao seio,
não a detêm pena ou dúvida – não se curva a fato ou piada.
Isso é diversão para homens, de que a honra dela não pende;
Ela, a Outra Lei que nós temos, é aquela Lei e mais nada!
Ela não pode dar vida para além do que a engrandece,
como a Mãe do Infante ou como Companheira do seu Par;
e quando, faltando Infante e Homem, clama o seu direito
de femme (ou barão), é o mesmo o equipamento a empregar.
Com convicções é casada, pois faltam laços maiores;
suas rusgas são seus filhos, e ai de quem disso se esquece!
Não terá frios debates, mas pronta, desperta, instante,
a guerrear por esposo e filho, a fêmea da espécie.
Sem provocações e ameaças, a fêmea do urso assim briga;
e com a fala que envenena e rói, a cobra sem dó;
e vivisseção científica do nervo até que ele seque,
e de dor se estorça a vítima – como com o Jesuíta a squaw!
Assim é que o Homem, covarde, quando se ajunta em concílio
com seus bravos companheiros, para ela um lugar não rende
onde, em guerra com a Consciência e a Vida, levanta as mãos
a um Deus de abstrata justiça – que mulher alguma entende.
O Homem sabe! E sabe mais: que a Mulher que Deus lhe deu
deve ordenar sem impor-se, sem obrigá-lo ao agacho;
e Ela sabe, pois o avisa, e Seus instintos não falham,
que a fêmea da Sua espécie é mais mortal do que o macho!
Sexta-feira, 30 de Dezembro de 2011
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O Combate - Joaquim Namorado :
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Nada poderá deter-nos,
Nada poderá vencer-nos.
Vimos do cabo do mundo
Com esse passo seguro
De quem sabe aonde vai.
Nada poderá deter-nos
Nada poderá vencer-nos!
Guerras perdidas e ganhas
Marcaram o nosso corpo
Mas nunca em nós foi vencida
Essa certeza sabida
De saber aonde vamos
Nada poderá deter-nos
Nada poderá vencer-nos!
Os mortos não os deixamos
Para trás, abandonados,
Fazemos deles bandeiras,
Guias e mestres, soldados
do combate que travamos
Nada poderá deter-nos
Nada poderá vencer-nos!
Nada poderá deter-nos
Pró assalto das muralhas
nossos corpos são escadas
para as batalhas da rua
nossos peitos barricadas
Nada poderá deter-nos
Nada poderá vencer-nos!
Nada poderá deter-nos
Vimos do cabo do mundo
Vimos do fundo da vida:
Que somos o próprio mundo
E somos a própria vida
Nada poderá deter-nos
Nada poderá vencer-nos!
Quinta-feira, 29 de Dezembro de 2011
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Giovanni Boccaccio - Pensamentos :
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As riquezas pintam o homem, e com as suas cores cobrem e escondem não apenas os defeitos do corpo, mas também os da alma.
Fazer grande estardalhaço a propósito de uma ofensa de que fomos vítimas, não atenua o desgosto, mas aumenta a vergonha.
Num voo de pombas brancas, um corvo negro junta-lhe um acréscimo de beleza que a candura de um cisne não traria.
Mais vale agir na disposição de nos arrependermos do que arrependermo-nos de nada termos feito.
Quarta-feira, 28 de Dezembro de 2011
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Amor sem tréguas - António Gedeão :
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É necessário amar,
qualquer coisa ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.
Não importa de quem,
não importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não se vê.
Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá o que for.
Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
que a sonhar se precise.
Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.
Amar como um homem forte
só ele o sabe e pode-o;
amar até à morte,
amar até ao ódio.
Que o ódio, infelizmente,
quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor.
Terça-feira, 27 de Dezembro de 2011
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El color de tu alma - Juan Ramón Jiménez :
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A Cor da Tua Alma
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Enquanto eu te beijo, o seu rumor
nos dá a árvore, que se agita ao sol de ouro
que o sol lhe dá ao fugir, fugaz tesouro
da árvore que é a árvore de meu amor.
Não é fulgor, não é ardor, não é primor
o que me dá de ti o que te adoro,
com a luz que se afasta; é o ouro, o ouro,
é o ouro feito sombra: a tua cor.
A cor de tua alma; pois teus olhos
vão-se tornando nela, e à medida
que o sol troca por seus rubros seus ouros,
e tu te fazes pálida e fundida,
sai o ouro feito tu de teus dois olhos
que me são paz, fé, sol: a minha vida!
Segunda-feira, 26 de Dezembro de 2011
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Luar de Paquetá - Hermes Fontes :
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Nestas noites olorosas
Quando o mar, desfeito em rosas
Se desfolha a lua cheia
Lembra a ilha um ninho oculto
Onde o amor celebra em culto
Todo encanto que a rodeia
Nos canteiros ondulantes
As nereidas incessantes
Abrem lírios ao luar
A água em prece burburinha
E em redor da capelinha
Vai rezando o verbo amar.
Jardim de afetos
Pombal de amores
Humilde teto
De pescadores
Se a lua brilha
Que bem nos dá
Amar na ilha de Paquetá
Pensamento de quem ama,
Hóstia azul, fervendo em chama,
Entre lábios separados...
Pensamento de quem ama
Leva o meu radiograma
Ao jardim dos namorados
Onde é esse paraíso
O caminho que idealizo
Na ascensão para esse altar
Paquetá é um céu profundo
Que começa neste mundo
Mas não sabe onde acabar...
Jardim de afetos
Pombal de amores
Humilde teto
De pescadores
Se a lua brilha
Que bem nos dá
Amar na ilha de Paquetá
Domingo, 25 de Dezembro de 2011
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A Caminho do Corvo - Vitorino Nemésio :
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A minha vida está velha
Mas eu sou novo até aos dentes.
Bendito seja o deus do encontro,
O mar que nos criou
Na sêde da verdade,
A moça que o Canal tocou com seus fantasmas
E se deu de repente a mim como uma mãe,
Pois fica-se sabendo
Que da espuma do mar sai gente e amor também.
Bendita a Milha, o espaço ardente,
E a mão cerrada
Contra a vida esmagada.
Abençoemos o impossível
E que o silêncio bem ouvido
Seja por mim no amor de alguém.
Sábado, 24 de Dezembro de 2011
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Yra Yra - Enrique S. Discepolo :
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Cuando la suerte qu' es grela,
fayando y fayando
te largue parao;
cuando estés bien en la vía,
sin rumbo, desesperao;
cuando no tengas ni fe,
ni yerba de ayer
secándose al sol;
cuando rajés los tamangos
buscando ese mango
que te haga morfar...
la indiferencia del mundo
-que es sordo y es mudo-
recién sentirás.
Verás que todo el mentira,
verás que nada es amor,
que al mundo nada le importa...
¡Yira!... ¡Yira!...
Aunque te quiebre la vida,
aunque te muerda un dolor,
no esperes nunca una ayuda,
ni una mano, ni un favor.
Cuando estén secas las pilas
de todos los timbres
que vos apretás,
buscando un pecho fraterno
para morir abrazao...
Cuando te dejen tirao
después de cinchar
lo mismo que a mí.
Cuando manyés que a tu lado
se prueban la ropa
que vas a dejar...
Te acordarás de este otario
que un día, cansado,
¡se puso a ladrar!
Sexta-feira, 23 de Dezembro de 2011
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Dieppe - Samuel Beckett :
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1.
de novo o último refluxo
os pedregulhos mortos
a meia-volta e após as escalas
rumo à antiga iluminação
2.
eu sou aquele curso de areia que passa
entre o cascalho e a duna
a chuva do verão chove sobre minha vida
sobre mim minha vida me vai me caça
e termina no dia da sua iniciação
momento querido eu te vejo
nesta cortina de névoa que desmancha
quando eu já não piso nestaslongas soleiras movediças
e vivo o tempo de uma porta
que se abre e se fecha
3.
o que eu faria deste mundo sem rosto sem perguntas
onde ser não dura mais que um instante onde cada instante
flui pelo vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no fim
corpo e sombra juntos são tragados
o que eu faria sem este silêncio garganta dos murmúrios
ofegando furiosos para o salvamento para o amor
sem este céu que se eleva
da poeira do seu lastro
o que eu faria eu faria como ontem e como hoje
cuidando pela minha janela se eu não estou só
a passear e a virar pra longe de toda a vida
dentro de um espaço fantoche
sem voz entre as vozes
trancadas aqui comigo
4.
eu quero que o meu amor morra
que ele chova sobre o cemitério
e ruelas em que eu vá
lamentando a que pensou me amar
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*
ORIGINAL :
encore le dernier reflux
le galet mort
le demi-tour puis les pas
vers les vieilles lumières
2.
je suis ce cours de sable qui glisse
entre le galet et la dune
la pluie d’été pleut sur ma vie
sur moi ma vie qui me fuit me poursuit
et finira le jour de son commencement
cher instant je te vois
dans ce rideau de brume qui recule
où je n’aurai plus à fouler ces longs seuils mouvants
et vivrai le temps d’une porte
qui s’ouvre et se referme
3.
que ferais-je sans ce monde sans visage sans questions
où être ne dure qu’un instant où chaque instant
verse dans le vide dans l’oubli d’avoir été
sans cette onde où à la fin
corps et ombre ensemble s’engloutissent
que ferais-je sans ce silence gouffre des murmures
haletant furieux vers le secours vers l’amour
sans ce ciel qui s’élève
sur la poussière de ses lests
que ferais-je je ferais comme hier comme aujourd’hui
regardant par mon hublot si je ne suis pas seul
à errer et à virer loin de toute vie
dans un espace pantin
sans voix parmi les voix
enfermées avec moi
4.
je voudrais que mon amour meure
qu’il pleuve sur le cimetière
et les ruelles où je vais
pleurant celle qui crut m’aimer
Quinta-feira, 22 de Dezembro de 2011
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Las nubes - José Hierro :
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Inútilmente interrogas.
Tus ojos miran al cielo.
Buscas detrás de las nubes,
huellas que se llevó el viento.
Buscas las manos calientes,
los rostros de los que fueron,
el círculo donde yerran
tocando sus instrumentos.
Nubes que eran ritmo, canto
sin final y sin comienzo,
campanas de espumas pálidas
volteando su secreto,
palmas de mármol, criaturas
girando al compás del tiempo,
imitándole la vida
su perpetuo movimiento.
Inútilmente interrogas
desde tus párpados ciegos.
¿Qué haces mirando a las nubes,
José Hierro?